Ser capacitado a formular uma consistente, ampla e
clara opinião sobre as verdades reveladas nas Escrituras é um grande
privilégio. Mas aqueles que o possuem estão sujeitos à tentação de pensarem
exageradamente a respeito de si mesmos e menosprezarem os outros, em especial
aqueles que não somente recusam adotar tais opiniões, mas também se opõem a
elas. Existem poucos escritos sobre assuntos controversos que, embora
excelentes em outros aspectos, não estão maculados por este espírito de
superioridade. E, se aqueles que não foram chamados para esse ministério (de
escrever) examinarem atentamente a si mesmos, também perceberão este espírito
de superioridade agindo em seus próprios corações. E, na medida que prevalece
em nós, somos obrigados a reconhecer nossa culpa de ignorância e
inconsistência, as quais estamos sempre dispostos a lançar sobre nossos
oponentes. Para nos ajudar a corrigir este mal, não conheço coisa melhor do que
ponderar seriamente a respeito da admirável diferença que existe entre uma
opinião adquirida e nossa conduta atual. Em outras palavras, quão pouca
influência nosso conhecimento ou opiniões exercem sobre nosso comportamento.
Isto confirma a verdade e a conveniência da observação do apóstolo Paulo: .Se
alguém julga saber alguma coisa, com efeito, não aprendeu ainda como convém
saber. (1 Co 8.2). Não que, necessariamente, nos tornamos insensíveis àquilo
que o Senhor nos tem ensinado. Nem seria possível que assim fosse. Todavia, se
julgarmos nosso conhecimento pelos seus resultados em nossas vidas, avaliando-o
somente pelo seu valor experimental e prático (que é o padrão correto pelo qual
devemos julgá-lo), descobriremos que ele é tão frágil e pobre; por isso,
dificilmente merece ser considerado.
Por exemplo, com muita convicção estamos
persuadidos de que Deus é onipresente. Ainda que encontremos grandes
dificuldades em nossas idéias sobre este assunto, poucos a ele se opõem. Em
geral, a onipresença de Deus é admitida por pessoas incrédulas e, podemos
acrescentar, muito freqüentemente pelos crentes, como se tanto estes como
aqueles não a conhecessem. Se os olhos do Senhor estão em todos os lugares, este
pensamento deveria constituir uma grande proteção para a conduta daqueles que
professam ouvi-Lo. Sabemos como regularmente modificamos nossas atitudes quando
estamos na presença de uma pessoa da qual dependemos ou que possui uma posição
de superioridade sobre nós. Em tal circunstância, somos cuidadosos em corrigir
nosso comportamento, evitando o que é impróprio ou ofensivo!
Não achamos estranho que, se temos extraído das
Escrituras nossos conceitos sobre a majestade, a pureza e santidade divina, nos
mostramos insensíveis na indizível obrigação de regular tudo que dizemos e
fazemos de acordo com os seus preceitos? Não é estranho que em muitas ocasiões
somos traídos por atitudes incorretas que não cometemos na presença de pessoas
importantes e, talvez, mesmo de crianças? Inclusive quando estamos orando, por
meio do que professamos nos aproximar do Senhor, a consideração de que os olhos
do Senhor estão sobre nós manifesta ter pouca capacidade de prender nossa
atenção ou impedir que nossos pensamentos vagueiem, à semelhança dos olhos de
um tolo, por todos os lugares da terra. O que devemos pensar de alguém que, ao
ser recebido na presença de um rei, para tratar de um importante assunto,
interromperá a audiência para caçar uma borboleta? Se tivermos tal momento de fraqueza,
ela servir á apenas como um frágil exemplo das inconsistências com as quais se
acusam, na oração, aqueles que conhecem seus próprios corações. Eles não são
completamente ignorantes do fato que atitude de espírito é necessária para que
o pecador se aproxime de Deus, diante de Quem os anjos foram representados como
seres que cobrem suas faces.
Entretanto, desafiando este nobre conceito sobre
Deus, a atenção de tais pessoas é desviada dAquele com quem terão de prestar
contas para as mais insignificantes trivialidades. Incapazes de reconhecer a
Presença da qual confessam estar cercados, falam como se estivessem proferindo
palavras ao ar. Além disso, se nosso senso de que Deus está sempre presente
fosse, em boa medida, proporcional àquilo que professamos, este senso nos
preservaria com eficiência de muitos temores inoportunos e sem fundamento, com
os quais às vezes somos afligidos! Deus disse: .Não temas, eu estou contigo.;
Ele prometeu ser um escudo e guardar todos que confiam nEle. Porém, embora professemos
crer em sua Palavra e esperar que Ele seja nosso protetor, raramente nos
sentimos seguros, ao enfrentar qualquer perigo, mesmo quando estamos cumprindo
nossos deveres. Temos pouca razão para valorizar nosso conhecimento sobre esta
inquestionável verdade, quando ela não exerce uma eficaz e habitual influência
sobre nossa conduta.
De maneira semelhante, a doutrina da soberania de
Deus, ainda que receba menos atenção do que a anterior, não é menos aceita
entre os que se chamam calvinistas. Em nossos debates com os arminianos,
defendemos com zelo este assunto doutrinário, estando dispostos a nos
admirarmos de que alguém seja tão endurecido de coração, ao ponto de questionar
o direito do Criador para fazer o que deseja com aquilo que Lhe pertence.
Enquanto estamos engajados em defender a eleição incondicional, convencidos
pelos argumentos que as Escrituras nos oferecem em apoio a esta verdade e
nutridos pela confortável esperança de que nós mesmos pertencemos ao número dos
eleitos, dificilmente evitamos acusar nossos inimigos, chamando- os orgulhosos,
perversos e obstinados, porque se opõem à eleição incondicional. Sem dúvida,
esta oposição se fundamenta no orgulho do coração humano, mas este maldoso
princípio não está limitado apenas a um grupo; também ocasionalmente surge
quando aqueles que contendem em favor da soberania divina são mais
influenciados pelo orgulho do que seus oponentes. Esta humilhante doutrina
requer submissão à vontade de Deus, em todas as circunstâncias da vida, bem
como demanda nossa anuência ao propósito divino em demonstrar sua misericórdia.
Mas, infelizmente, com muita freqüência nos vemos completamente incapazes de
aplicá-la a nós mesmos, de modo a conciliar nossos espíritos com as aflições
que Deus se agrada em nos conceder. Quando somos capazes de afirmar, sendo
exercitados na pobreza ou em graves perdas e sofrimentos: .Fiquei calado e não
abri meus lábios, porque Tu fizeste estas coisas., somente então, e não antes,
mostramos estar realmente convencidos de que Deus tem o soberano direito de
dispor nossa vida e todas as suas circunstâncias conforme Lhe agrada. Em tais
ocasiões, o argumento que habitual e corretamente oferecemos aos outros, como
suficientes para silenciar todas as suas objeções, recai sobre nós: .Quem és
tu, ó homem, para discutires com Deus?! Porventura, pode o objeto perguntar a
quem o fez: Por que me fizeste assim? . Esta é uma prova evidente de que nosso
conhecimento é mais nocional do que experimental. Que inconsistência
demonstramos ao achar difícil nos sujeitarmos àquilo que Deus permite para nós
mesmos, em questões indizivelmente menos importantes, enquanto pensamos que Ele
é justo e correto em reter dos outros as coisas que contribuem ao eterno
regozijo deles!
As circunstâncias que o Senhor envia para os que O
temem não apenas procedem de sua soberania, mas também de sua sabedoria e
graça. Deus uniu o bem-estar dos salvos à sua própria glória, estando
comprometido, por sua própria promessa, a fazer todas as coisas cooperarem
juntas para o benefício deles. Deus escolhe para o seu povo circunstâncias
melhores do que eles mesmos poderiam escolher. Se estão passando por aflições,
existe uma razão de ser para estas; e nada Ele retém de seu povo, exceto aquilo
que, no âmbito geral, é melhor eles não possuírem. Assim nos ensinam as
Escrituras, e assim nós professamos crer.
Com estes princípios em nossos corações, não
erramos ao sugerir motivos que trazem consolo e paciência ao nossos irmãos que
se encontram em aflições; podemos assegurar-lhes, sem hesitação, que, se confiam
nas promessas, suas preocupações estão em mãos seguras; também podemos
dizer-lhes que as circunstâncias presentes, que não trazem alegria e sim
tristeza, no devido tempo produzirão os frutos pacíficos de justiça; e o
consolo e a misericórdia são tão certos quanto as provações. Através da
história de José, Davi, Jó e outras relatadas nas Escrituras, podemos
provar-lhes que, apesar de quaisquer situações tenebrosas do presente, com
certeza as coisas sairão bem para o crente. Deus pode retificar os caminhos
escabrosos, e, com freqüência, Ele produz o maior benefício utilizando eventos
que consideramos ruins. Disto podemos inferir não apenas a pecaminosidade mas
também a tolice de encontrar erro em qualquer das circunstâncias que Deus nos
concede. Podemos dizer aos que estão passando por aflições que os piores
sofrimentos do tempo presente não são dignos de ser comparados com a glória que
será revelada; portanto, estando sob grandes pressões, eles devem chorar como
pessoas que esperam em breve ter enxugadas todas as suas lágrimas. Mas, quando
nós mesmos estamos passando por provações, sendo atribulados por todos os lados
ou afligidos em uma área muita querida de nossas vidas, quão difícil é
sentirmos a força destes argumentos, embora saibamos que são verdadeiros! Por
conseguinte, a menos que sejamos capacitados com novo vigor procedente do alto,
estamos sujeitos a lamentar e desanimar, como se pensássemos que nossas
aflições surgiram da terra e que o Senhor esqueceu-se de ser gracioso.
É possível mostrar a diferença entre nosso
discernimento, quando se encontra bastante iluminado, e nossa atual experiência
em relação a toda verdade espiritual. Sabemos que não existe proporção entre o
tempo e a eternidade, Deus e suas criaturas, o favor do Senhor e o desagrado e
bondade do homem. Entretanto, quando estas coisas são colocadas em íntima
competição, temos de permanecer firmes no caminho do dever; mas, se não
recebermos novas provisões de graça, estejamos certos de que cairemos na hora
da provação, e nosso conhecimento não terá outro efeito além de tornar nossa
culpa mais injustificável. Parecemos estar certos de que somos criaturas
fracas, pecadoras, imperfeitas; no entanto, somos propensos a agir como se
fôssemos sábios e bons. Em resumo, não podemos negar que grande parte de nosso
conhecimento, conforme já descrevemos, assemelha-se à luz da lua, destituída de
calor e influência. E dificilmente podemos evitar pensamentos elevados a
respeito de nós mesmos por causa de tal conhecimento.
Assim como o salmista, devemos perguntar: .Senhor,
que é o homem? . Sim, que enigma, que criatura inconsistente é o crente! Ele
conhece a si mesmo; ele conhece ao seu Senhor. Seu entendimento foi iluminado
para assimilar e contemplar os grandes mistérios do evangelho. O crente tem
idéias corretas sobre a malignidade do pecado, a vaidade do mundo, a beleza da
santidade e a natureza da felicidade. Ele era trevas, mas agora é luz no
Senhor; tem acesso ao Pai por intermédio de Jesus Cristo, ao qual o crente está
unido e nEle vive pela fé. Enquanto os princípios que ele recebeu são renovados
pela agência do Espírito Santo, ele pode fazer todas as coisas. Ele é humilde,
gentil, paciente, fiel. Regozija-se nas aflições, triunfa nas tentações, vive
em harmonia com as antecipações da glória eterna e não considera nada como
precioso neste mundo, desde que possa glorificar a Deus, seu Salvador, e
terminar sua vida com alegria. Mas a sua força não está em si mesmo; ele é
absolutamente dependente, cercado por enfermidades e afligido por uma natureza
corrompida. Se o Senhor retirar o Seu poder, o crente se torna fraco como
qualquer outro homem e afunda, assim como uma rocha cai sobre a terra por causa
de seu próprio peso. O conhecimento íntimo do crente pode ser comparado à
janela de uma casa, que pode transmitir luz, mas não pode retê-la. Sem as
renovadas e constantes comunicações provenientes do Espírito Santo, o crente é
incapaz de resistir a menor tentação, suportar a mais leve provação, realizar o
mais insignificante serviço da maneira correta ou mesmo nutrir bons
pensamentos. O crente sabe disso, porém o esquece com freqüência. Mas o Senhor
o faz recordar- se, por suspender aquela assistência sem a qual o crente nada
pode fazer. Então, ele percebe o que realmente é e, com facilidade, se previne
contra a atitude de agir contra o seu melhor conhecimento. Essa constante
percepção de sua própria fraqueza o ensina progressivamente onde sua força se
encontra: ela não está em qualquer coisa que ele mesmo já conquistou ou possa
declarar que lhe pertence; está na graça, poder e fidelidade do Salvador. O
crente aprende a deixar de confiar em seu próprio raciocínio, a se envergonhar
de seus próprios esforços, a aborrecer a si mesmo, no pó e na cinza, e a
glorificar apenas o Senhor.
Disto podemos observar o seguinte: os crentes que
possuem mais conhecimento não são, necessariamente, os mais espirituais. De
fato, alguns são capazes e realmente vivem de maneira mais honrável e tranqüila
com dois talentos do que outros que têm cinco talentos. Aquele que conhece sua
própria fraqueza e depende somente do Senhor, com certeza florescerá, embora
sejam pequenas suas realizações e habilidades já conseguidas. E aquele que
possui os maiores dons, discernimentos mais claros e amplo conhecimento, se
alimentar pensamentos elevados acerca de suas vantagens, está no iminente
perigo de errar e cair, pois o Senhor não permitirá que seus amados gloriem-se
em si mesmos. Ele guia os humildes, supre os famintos com coisas boas e despede
com mãos vazias os abastados. E aquele que se humilha Ele exalta.
Fonte: Editora Fiel
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